Gritos da Prisão

Rubrica onde se apresentam alguns textos, visões e rabiscos produzidos por Mbanza Hanza durante o período em que ele e companheiros estiveram presos no Processo 15+2.

Que direi?

“Este é o caminho”

«Este é o caminho, andai nele. Quer vades para a direita, quer vades para a esquerda.» Estas são palavras de um combatente judeu do oitavo século antes de Cristo. Trago-as aqui porque elas traduzem o espírito de qualquer luta justa no século 21, e, é o meu apelo: este é o caminho!

Os anos passam rápido e o tempo escreve. Parece que o 20 de Junho de 2015 completouo seu ciclo e eu também. A contar desde setembro de 2011, conheci todas as cadeias ou estabelecimentos penitenciários de Luanda.

Experimentei e vi todas as formas possíveis de encarceramento. Não sei se é conclusiva a noção que tenho de liberdade e a sua privação. Conheci “o resto do mundo” sendo eu parte dele. Percebi mais ainda a dicotomia entre fracos e fortes, oprimidos e opressores, deserdados e dignos, chefes e subordinados, leis e ordens. Entendi também a diferença entre prever e viver, falar e fazer, lutar e entender a luta, suportar e confrontar e ficar desamparado mesmo estando no meio de muitos.

Acima de tudo aprendi. Aprendi mais uma vez que as aparências podem enganar; que o crime compensa para muitos e a inocência é crime para uma fraca minoria; que exteriótipos são mecanismos de negação, de exclusão do “outro”, são uma expressão de medo, de insegurança.

Aprendi que a verdadeira partilha não é aquela que se faz na abundância; que a aflição lapida a alma dos homens. Aprendi que o eu só faz sentido com os outros; que o mundo é o que é porque continuamos a achar que o eu pode ser soberano; que a mais eficiente arma para travar quealquer luta é a nossa vontade; que não existe o espírito de sacrifício, constrói-se; que não existe a coragem, a coragem é a forma mais pura de sentir medo; que não são as agregações, os códigos, os líderes que fazem a transformação, a transformação está em cada um de nós: nos nossos medos, na nossa insegurança, na nossa incerteza, na nossa incredulidade, mudando estas variáveis, aí é que mudamos o mundo.

Mas que caminho é este?

É um caminho de conquistas. Gostaria de dizer vitória, mas vitória é uma palavra muito orgulhosa, torna-se vaga no plural «vitórias» e exige provas. As vitórias também só vivem no passado, por isso prefiro dizer conquistas. As conquistas podem ser imaginárias, podem ser imateriais e dependem de nós e da nossa vontade de classificá-las como tais.

Mas é também verdade que este caminho é um caminho de sacrifícios, é um caminho de espinhos, um caminho onde muito se semeia mas onde os frutos raramente se saboreiam. É um caminho em que se está certo da incerteza, lúcido na demência, de sorriso armado em cada lágrima derramada. É o caminho da marcha, da humildade, da entrega, dos que entendem que “sou porque somos!”

Um dedo a apontar

Sei que ao apontar um dedo, tenho 4 outros diretamente virados para mim. O que quer dizer que tudo o que eu apontar contra vocês, devo cobrar a mim mesmo 4 vezes mais.

É aos meus companheiros de luta que me quero dirigir. É a vossa garra que voluntáriamente quereis doar às desnecessidades, que quero atingir.

Tenho notado um ar de desnorte, de insegurança, de excessiva desconfiança e extrema atomização ao ponto de não se conseguir conjugar esforços para uma iniciativa comum. E estamos desta forma a dar uma má resposta à ditadura, ao desafio político. Estamos a dizer que afinal o ativismo pode ser preso, que a revolução pode ser ditada setença em tribunal, que o regime acertou em cheio ao prender uma dezena e meia de jovens. Querem saber? O regime, sim, nos prendeu,mas é a vossa inação que nos mantém presos!

Nós precisamos agir, precisamos mostrar que a consciência revolucionária não se prende. Para tal, precisamos matar os nossos fantasmas: o fantasma dos infiltrados ou informants e o ativismo das comparações. É preciso ter bem em mente qual é a nossa luta e quais são os seus incovenientes.

Até nas grandes agências de inteligência do mundo (CIA, KGB, Mossad, MI6, etc.) existem informantes e agentes duplos. Que dizer de um grupesco de ativistas, extremamente aberto e amorfo hierárquica e estatutariamente? Duas razões para não nos preocuparmos além do civicamente necessário:

1. Além de serem ingredientes de toda a luta justa em diataduras, o facto do regime pagar informantes para nos vigiar e/ou sabotar as nossas iniciativas, é uma demonstração do seu temor ao que fazemos e um reconhecimento do nosso potencial apesar de amorfos e inofensivos.

2. A nossa luta não é evitar ou combater informantes. A nossa luta funda-se na transformação social e na refundação do estado angolano.

Portanto, bastam as medidas civicamente necessárias para evitá-los ou nos livrarmos deles sempre que for necessário. Mas não devemos desenvolver fobias por informantes ao ponto de tornar exitosa a política de dividir para melhor reinar do regime.

Quanto ao ativismo das comparações: qual é a vigilia que mais enche? Qual é o ativista mais importante? Qual é o ativista que mais se visita? Etc.; o ativismo do protagonismo, ou seja, fazer as coisas visando aparecer na imprensa, inibir iniciativas que não venham dos pseudo-gurus do ativismo, etc.; nem devia eu estar a perder o meu tempo a falar disso aqui, pois para além de não ser essa a nossa luta, é tudo infantilismo cívico e imaturidade política. Bastava fazer valer o velho ditado «um por todos, todos por um».

Precisamos igualmente entender que a nossa luta não é ideológica, onde a ideologia seja dizer 32 É MUITO e ZÉ DÚ FORA! Devemos ser proativos, pragmáticos e inovadores para envolver mais pessoas à causa. Devemos ser capazes de identificar onde está o problema da letárgica aderência. Nós já não precisamos de dar mostras de coragem, bravura discursiva e contundência na ação.

Já demos provas mais do que suficientes quanto a tudo isso. E agora? Agora é hora de reavaliar: será que é o nosso discurso que já não rende? Vamos mudá-lo e adaptá-lo àquilo que será mais cativante e envolvente. É o 1º de maio que já não nos permite manifestar? Vamos manifestar no nosso bairro, na nossa rua, ou até mesmo na nossa casa, ou melhor ainda, por que não mudra radicalmente a nossa forma de manifestar? Leiam os 198 métodos e técnicas de luta não violenta de Gene Sharp para ganhar inspiração. Finalmente, proatividade, pragmatismo, inovação é a nossa única ideologia!

Agora dirijo-me a todos…

É minha convicção que uma ditadura só prevalece se houver conivência. No nosso caso em concreto, somos todos coniventes. Só há ditadura em Angola, fingida ou declarada porque os partidos políticos da oposição são coniventes. Só há ditadura porque a Igreja em Angola é conivente.

Só há ditadura porque as Universidades são coniventes. Só há ditadura porque as ONG são coniventes. Só há ditadura em Angola porque os oprimidos, a sociedade, a massa pensante éconivente! Há ditadura acima de tudo porque a oposição política decidiu fazer Oposição de Concertação. Lembrem-se, o PADEPA que tanto sacudiu as águas políticas angolanas nos anos que já fazem memória foi um partido político.

Dado esta quadro, muitos recomendam que é preciso ter coragem para mudar, que é preciso ser audacioso e acreditar para mudar. Eu não. Eu prego o medo. Devemos ter medo para mudar:

Devemos ter medo de viver como estrangeiros no nosso próprio país. Devemos ter medo de viver num país onde não podemos nos expressar, um país construído na base da obediência cega ou compulsiva. Devemos ter medo de viver num país que se vai transformando em propriedade privada da família presidencial.

Devemos ter medo de viver num país militarizado, onde as ordens superiores estão acima das leis, onde as pessoas estão acima das instituições. Devemos ter medo de estar a construir um país na certeza de que morreremos à porta do hospital se não tivermos agasosa para o médico, que a nossa filha ou filho não transitará na escola e não se realizará na vida por mérito próprio. Devemos ter medo de estar a construir um país onde primeiro devemos ser militantes e só depois cidadãos, onde todos somos iguais mas uns são mais iguais que os outros, onde somos apenas lembrados quando se aproximam eleições.

Devemos ter medo de fazer política só para o inglês ver. Devemos ter medo de fazer e ser Oposição de Concertação. Devemos ter medo da corrupção. Devemos ter medo da impunidade. Devemos ter medo do sequestro das instituições republicanas e da essência democrática. Devemos ter medo do espírito do faz-de-contas, do deixa-andar, do “isso é Angoléé!” Devemos ter medo de só olhar para o céu e não cobrar da terra.

Devemos ter medo de eternamente sacrificar os nossos direitos e cegamente cumprir até os nossos desdeveres. Devemos ter medo do excesso de zelo, da bajulação, do desconhecimento das leis. Devemos ter medo de não nos interessarmos com quem gere aquilo que é de todos nós, o bem público, material ou imaterial. Devemos ter medo do silêncio, de só aceitar!

É este medo que nos conduzirá à luta, é este medo que nos LIBERTARÁ!

Hospital Prisão de São Paulo, 22 de Junho de 2016

Texto de Afonso Matias “M´Banza Hamza”

Mbembu Buala

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