QUEM SÃO, AFINAL DE CONTAS, OS ´´SELVAGENS´´ CÁ DA BANDA?

Há certos discursos políticos que, embora desprezíveis e ocos de substância, estimulam o nosso intelecto e fazem polvilhar ideias mil na nossa cabecinha. Como bem dizia o meu malogrado Professor de Moral Política em Roma, o padre Júlio de la Torre, os outros dão-nos o que pensar! Foi dele também que captei esta: ´´diz-me quem lês e dir-te-ei quem és´´. Mas aqui no caso vertente, a coisa fica mais ou menos assim: ´´diz-me o que pensas e dir-te-ei quem és´´. Pois é, reservo aqui um tempinho dos meus afazeres para uma breve incursão ao mundo da «selva» evocado pela exma senhora Luisa Damião na sua verborreia do Namibe. Ao ouvi-la pronunciar, altaneira, aquela expressão, naveguei imediatamente para as minhas aulas de Antropologia Cultural aos estudantes do curso de História onde fui desencantar ´´o mito do bom selvagem´´ de Jean-Jacques Rousseau que deu corpo às teorias oitocentistas sustentadas por certos iluminados caucasianos depois do seu primeiro contacto com os povos indígenas da América.

O estudo da Antropologia cultural teve na sua génese uma curiosidade mórbida sobre o ´´OUTRO´´ (o diferente, o exótico, o selvagem) e tudo aquilo que representava então a periferia do mundo ´´civilizado´´. Não partiu imediatamente, como veio a ser mais tarde, com o postulado filosófico de Sócrates: conhece-te a ti mesmo! A Europa estava em plena expansão marítima ao encontro doutros mundos até então ignotos. Assim, o encontro com esses mundos, dentro da lógica do altaneirismo leucodérmico, passou para a história como a grande epopeia dos ´´descobrimentos´´. O que é que descobriram? No nosso caso, em África, descobriram os selvagens, os primitivos e os canibais, mais tarde designados por cafres .

Foi com estes epítetos que preencheram as páginas das gazetas metropolitanas da época e até de livros etnológicos e etnográficos de supostos cientistas e exploradores. Das simples crónicas passou-se para as teses de carácter (pseudo)científico que vieram tentar fundamentar a inferioridade congénita do homem negro em relação ao homem branco. A título de exemplo, trago aqui alguns desses iluminados: Arthur de Gobineau, na sua monumental obra ´´De l’Inegalité des races humaines´´ defende uma clara inferioridade do homem negro em relação ao homem branco; Hegel, na sua obra ´´Curso sobre a Filosofia da História´´ negou a historicidade das sociedades negro-africanas, pois o negro (o selvagem) representa o espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido.

Coupland, no seu manual L’Histoire de l’Afrique Orientale, sentenciou que até Livingstone África propriamente dita não teve história. A razão é simples: a maior parte dos seus habitantes permaneciam por tempos imemoriais mergulhados na barbárie. E remata que isso não depende tanto da sua vontade, mas é o ´´desígnio da natureza´´: ´´permanecem no estagnamento sem avançar nem recuar´´; Gaxote num artigo publicado na ´´Revue de Paris´´ dizia: ´´Estes povos (selvagens) nada deram à humanidade. E deve ter havido qualquer coisa neles que os impediu. Nada produziram´´. Estas inépcias vindas de celebridades da época com tendências comparativas, onde o interesse pelo ´´OUTRO´´ partia de antemão com estereótipos deletérios, veio a ser a fina nata da ideologia que sustentou a escravatura do homem negro e a construção dos impérios coloniais euromundistas. São os estereótipos deste jaez que alimentam o racismo, o etnocentrismo, a xenofobia e a exclusão do outro.

O evolucionismo darwinista de pendor biológico foi habilmente transportado por Lewis Morgan e Ferguson para um evolucionismo cultural, tendo estes esquematizado a evolução humana em três estádios sucessivos: selvajaria, barbárie e civilização. No século XIX o homem negro ainda está na fase da selvajaria, enquanto os índios já galgavam os píncaros da barbárie. Felizmente estes postulados foram desmentidos por estudos posteriores, pois não houve uma trajectória unilinear da humanidade, mas formas divergentes de civilização dispersas pelo planeta. Franz Boas, o grande gurú da escola antropológica americana, rejeita na sua obra ´´Race, Laguage and Culture´´ as distinções evolucionistas entre raça inferior e raça superior, entre cultura rudimentar e evoluída.

No século XX, um escol de intelectuais negros, dentro e fora do continente, vai trazer à ribalta o pensamento contestatário que visava desconstruir os fundamentos ideológicos da subjugação do homem negro tendo chegado à conclusão de que não deviam continuar a implorar aos dominadores um pouco de dignidade para o homem negro. Era imperioso combater e destruir o sistema colonial. Destacam-se aqui as ideologias do panafricanismo, da negritude ou negrismo e dos movimentos messiânicos ou profético-salvíficos gerados no seio do protestantismo (v.g. Kimbanguismo, Tocoísmo, Lassismo, inter alia). Todos eles deram o seu contributo para a emancipação política e cultural do homem negro e do continente berço.

Este excursus permite-me entranhar não apenas o discurso, mas também o espírito e as motivações que levaram a exma senhora Luisa Damião a evocar a ´´selva´´ ao referir-se à UNITA. Se quem habita na selva é selvagem, a senhora sabia muito bem o que queria dizer. Não é preciso dar voltas para explicar isso. Está aqui bem clara uma plataforma comparativa eivada de estereótipos altaneiros a despeito dos seus compatriotas angolanos que fizeram essa experiência ímpar na Jamba. Quer nas palavras, quer no tom temos aí uma gratuita ofensa moral fruto da inércia mental e do antagonismo ideológico-partidário entre as duas maiores formações políticas angolanas.

Contudo, gostava aqui de refrescar a memória da senhora Luisa Damião que as páginas gloriosas conclamadas pelo seu partido em relação à luta de libertação nacional de Angola foram escritas na selva e não em cidades. Então esqueceu-se das chanas do Leste e das matas do Maiombe? O escritor Pepetela fez questão de traduzir essa experiência em romance (Maiombe) para não cair na amnésia colectiva. Provavelmente a senhora não tenha lido ainda essa obra. Aconselharia a fazê-lo quando lhe aprouver! Quando se fala do maquis (bases da guerrilha) e dos maquisard não estamos a falar de cidades. Trata-se da selva! É uma contingência táctica para as lutas de guerrilha que não podem sobreviver sem bases de refúgio. A UNITA fê-lo como o fez a FNLA e o MPLA, a não ser que este último tenha feito toda a luta de libertação dentro das cidades!?…Pudera!

Portanto, se o objectivo era ofender a UNITA porque veio da selva, então estou em crer que fica mais desprestigiada quem proferiu a ofensa do que aquele para quem foi dirigida. E mais. Para além da selva física existem as selvas sociológicas bem acoitadas nas cidades onde talvez a senhora sempre esteve e onde o seu partido sempre governou durante estas quatro décadas. A descaracterização humana de Luanda com índices de criminalidade a raiar comportamentos de selvajaria é fruto da má governação do seu partido e de políticas de exclusão e de marginalização de milhões de cidadãos deserdados convertidos em servos da gleba enquanto os grupos clientelares sustentados pelo MPLA se apoderaram do festim da independência.

Ora, partindo da minha premissa ´´diz-me o que pensas e dir-te-ei quem és´´, devo aqui dizer que este tipo de discursos exprimem algo mais profundo no subconsciente como o sentimento de aversão (ódio). Pode não ser apenas uma aversão politica. Adianto aqui a hipótese de estarmos diante duma aversão eugenésica. Noutros termos, trata-se de um sentimento de aversão em relação a uma determinada extirpe ou grupo de pessoas com as quais não partilhamos necessariamente a mesma origem, cosmovisão e interesses. No caso vertente, os refutados são os da ´´selva´´ da Jamba. Pronunciamentos dessa natureza não podem ser vistos apenas como um ápice de excitação mental, pois podem trazer a lume resquícios de ódios e de intolerância não ou mal resolvidos. Sendo um discurso que vem da liderança do partido, temo os seus efeitos multiplicadores nos militantes e simpatizantes. Neste sentido, o processo de reconciliação nacional, tão propalado, tem aqui um ponto de ordem!…

*Especial para O Kwanza

**Deputado e Professor Universitário

Fonte: o kwanza

Foto: MBEMBU BUALA PRESS

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