UM CASO, NO MÍNIMO, ESQUISITO
Pelo Sindicato dos Médicos de Angola (SINMEA) e pela Delegação do Ministério do Interior de Luanda (DMIL), a sociedade tomou conhecimento ontem do caso da morte do Dr. Sílvio Andrade Dala, enquadrado no Hospital Pediátrico David Bernardino, na sequência da sua detenção “por circular na via pública sem máscara”, no dia 1 de Setembro de 2020, por agentes da Polícia Nacional destacados na esquadra dos Catotes, no Rocha Pinto,
A causa da morte, de acordo com o comunicado da DMIL, resultou da apresentação de “fadiga”. O médico, refere a comunicação, “começou a desfalecer, tendo uma queda aparatosa, o que provocou ferimentos ligeiros na região da cabeça”.
“Devido ao seu estado grave”, prossegue o documento, “foi socorrido ao Hospital do Prenda e no trajecto acabou por parecer”, pelo que, o “Serviço de Investigação Criminal interveio, removendo o malogrado para a morgue do Hospital Josina Machel”.
O mesmo comunicado da DMIL dá conta igualmente, que do “contacto mantido com os familiares, confirmaram que o mesmo padecia de hipertensão”. Porém, acrescenta, “por imperativos legais, será efectuada autópsia ao cadáver para que se determina a causa da morte”.
Esta informação divulgada pela DMIL confirma entretanto, logo no seu terceiro parágrafo, que “após dirigir-se à Esquadra dos Catotes, no Rocha Pinto, foi-lhe explicado os moldes de pagamento e da multa e não tendo um ATM (multicaixa) nos arredores, telefonou a um familiar próximo para efectuar o pagamento da respectiva multa”. Tudo isso, de acordo com esse comunicado de imprensa, ocorreu logo após a detenção do médico, no dia 1 de Setembro, embora não seja especificada a hora da ocorrência.
COMUNICADO DO SINDICATO DOS MÉDICOS
Entretanto, na sua comunicação, o SINMEA, dá conta de informação que contraria, quase que em absoluto, os dados divulgados pela Delegação do Ministério do Interior de Luanda.
Essa instituição de representação e defesa dos médicos angolanos começa por referir que, o “nosso colega Dr. Sílvio Dala faleceu infelizmente dentro da cela da unidade policial da Wat no Rocha Pinto por provável choque hipovolémico” (diminuição do volume de sangue no corpo). E descreve os factos:
“No dia 1/9/20 por volta das 16h, foi interpelado por agentes da PNA por estar a conduzir a sua viatura particular, sozinho, sem o uso da máscara facial. Por isso foi levado a unidade policial da Wat, colocado na cela”.
O comunicado do SNMEA esclarece que “segundo o agente da Polícia, o Dr. Sílvio convulsionou e depois teve uma queda, embatendo com a cabeça num objecto contundente que resultou numa ferida com muito sangramento”. Mesmo assim, prossegue a comunicação, “a Polícia manteve na cela o Dr. que horas depois foi encontrado morto. Só assim entenderam levar o malogrado para o Hospital do Prenda onde foi apenas confirmado na viatura da Polícia a sua paragem cardio respiratória irreversível… Assim sendo, a Polícia levou para depositar na Morgue Central”. Atente-se que, tudo isso, ocorreu no dia 1 de Setembro.
A comunicação do Sindicato dos Médicos, refere que “no dia 3/9” portanto, dois dias após a ocorrência que resultou na morte do Dr. Sílvio Dala, “um grupo de colegas médicos do HPDM (Hospital Pediátrico David Bernardino) depois de tomar conhecimento através do pai da vítima a partir de Ndalatando, deslocou-se a referida morgue e, surpreendentemente encontrou a gaveta cheia de sangue, o colega apresenta uma ferida incisa tipo corte na região occipital o que presumimos ser submetido a pancadaria e duros golpes que resultou naquela ferida e abundante sangramento”.
Os colegas deram igualmente conta que, devido ao “prolongado tempo de permanência na cela, isto levou a um choque hipovolémico como causa provável da morte”. E informa que a autópsia para se definir as causas da morte seria realizada hoje, terminando com um apelo à “classe médica nacional a estar atenta, porque em breve “vamos tomar algumas decisões em que apelamos a vossa participação …” porque “os médicos não podem nem devem ser mortos assim tipo criminosos”.
É claro que sim. Nem médicos, nem qualquer outro cidadão, porque o papel da Polícia Nacional não deveria ser igual ao de uma gang de criminosos.
AS DÚVIDAS QUE O CASO SUSCITA
Da interpretação dos dois comunicados, facilmente se pode concluir que se está diante de informação desencontrada, que suscita vários questionamentos, particularmente para o lado da PNA. Como os seguintes:
1. Porque razão um cidadão, perfeitamente identificado, foi “atirado” para a Morgue como qualquer indigente, e a entidade pública para a qual estava profissionalmente vinculado, o Hospital Pediátrico David Bernardino, apenas no dia 3 de Setembro, dois dias após à morte do Dr. Sílvio Dala, recebeu a informação e da parte do seu pai, residente em Ndalatando? A Polícia teve dificuldade de contactar essa unidade hospitalar, localizada quase que, no mesmo recinto onde funciona a Morgue Central?
2. Que tipo de cela tem essa esquadra que possui, no seu interior, objectos contundentes que podem levar à morte um detido”?
3. Desde quando, o desfalecimento de alguém que está de pé, no chão, ainda que sozinho, provoca uma “queda aparatosa”, e contraditoriamente, apesar de aparatosa, causa apenas “ferimentos ligeiros na região da cabeça”, mas resultam em grande sangramento e não é socorrido logo de seguida?
4. Como é que alguém é “socorrido numa unidade hospitalar”, mas no trajecto “acabou por parecer”?
5. O familiar contactado pelo detido para pagar a multa chegou a concretizar esse procedimento e deslocou-se a unidade para fazer prova? Se sim, porque razão não foi informado da morte do médico?
6. Porque razão, uma falta administrativa de tão pouca gravidade, coberta inclusive com o pagamento de uma multa quase que insignificante, obriga o encarceramento de um médico ou de outro cidadão qualquer decente, numa cela?
Sem ter a pretensão de levantar suspeitas sobre o que terá sido o comportamento dos agentes da PN dessa unidade, ou até mesmo da vítima face o tratamento a que foi submetido, o que é um facto é que há muitas questões que, da leitura das duas informações, não batem certo. São, profundamente, contraditórias e não vemos razão para que a classe dos médicos tenha falseado ou fabricado os seus argumentos.
Contudo, os resultados da autópsia contribuirão para o apuramento da verdade. E oxalá que essa verdade não macule, uma vez mais, a imagem da PN e noutra dimensão, a do próprio Estado.
No entanto, o que fica subjacente já é que, tal como as ruas para combate a criminalidade, também as esquadradas devem ser contempladas com sistemas integrados de vídeo-vigilância, com meios de gravação à que os próprios agentes não tenham acesso. Porque algumas delas, como no caso em questão, podem estar a ser transformadas em matadouros.
Agências