
A ORQUESTRA DESAFINADA DO COMBATE À CORRUPÇÃO E À IMPUNIDADE CONTA COM O APOIO DO PARLAMENTO (?)
Na última reunião plenária ordinária, a oitava da presente sessão da IV Legislatura da Assembleia Nacional, que teve lugar a 20 de Maio do corrente ano, estava inscrito como primeiro ponto da ordem do dia a ´´Movimentação dos Deputados´´. À luz dos procedimentos regimentais da Assembleia Nacional é uma prática que acontece sem grandes polémicas, pois normalmente os Grupos Parlamentares fazem o seu trabalho de casa que passa pelas comissões competentes em razão da matéria e culmina com o plenário que aprova as respectivas resoluções. Embora seja matéria de discussão na ordem do dia, quase nunca foi motivo de diatribes entre as bancadas. Foi assim que ocorreu na última reunião em que eu próprio também votei favoravelmente. As resoluções foram aprovadas por unanimidade.
Entretanto, houve algumas curiosidades desta vez. Alguns cidadãos atentos ao que se passa no Parlamento não quiseram deixar esfriar a sopa e entenderam interpelar-me sobre dois factos por si anotados: a) Os casos dos Deputados septuagenários Kundi Paihama e Faustino Muteka, cujos mandatos foram suspensos temporariamente a coberto do art.º 151º, n.1, b) da CRA e o caso do Deputado Vigílio Tchyova que retomou o seu lugar depois da sua exoneração do cargo de Governador do Cunene. Os meus interlocutores alegavam no primeiro caso que esses Mais Velhos deviam abandonar definitivamente a vida politica e deixar os seus lugares para os mais novos; quanto ao segundo caso, a questão colocada era: como é que um arguido pode representar os cidadãos no Parlamento?
Essas questões de algum modo atiçaram a minha mente com reminiscências sobre o diálogo com os meus interlocutores. Comecei a sentir-me inquieto porque as respostas justificativas que fui dando não me parecem suficientemente persuasivas. Acho eu que foram respostas levianas como ´´um gato que passa pelas brasas e não quer perder um pelo´´, como nos dizia sempre o meu Professor de Direito Eclesiástico, o malogrado D. Damião Franklin. Entendi, por conseguinte, voltar ao assunto e ´´agarrar o touro pelos cornos´´, como dizem os castelhanos.
Neste sentido, devo aqui dizer que o questionamento quer do primeiro caso, quer do segundo têm alguma pertinência. No que toca ao primeiro caso, na verdade não é um problema legal. Do ponto de vista legal a Assembleia cumpriu o seu papel e esteve bem. Mas é preciso esticar o assunto para outras águas para além do legalismo. Vamos levar a reflexão para o princípio do bom senso. Atendendo à idade avançada e à saúde periclitante que se vai tornando razão impeditiva do exercício pleno e eficaz da função de Deputado, ao invés duma suspensão do mandato, os egrégios Deputados em epígrafe talvez recorressem a um outro instituto jurídico-constitucional que é a ´´renúncia do mandato´´ por força do art.152º, n.1. combinado com art.º 153, n.1, a) da CRA. Esta é uma prerrogativa que depende da vontade autónoma dos sujeitos.
Mas o partido em que militam também podia ter aí uma palavra persuasiva para agirem nesse sentido, abdicando dos seus assentos em favor de outros candidatos segundo a ordem de precedências, com capacidade plena do exercício da função que tornaria mais produtivo o seu Grupo Parlamentar e as respectivas Comissões de Trabalho Especializadas (CTE). Aliás, a suspensão temporária significa que a qualquer momento podem sentir-se dispostos a retomar o seu assento e é legítimo que o façam, mas como se pode ver isso é contraproducente. A meu ver, foi uma soberba oportunidade desperdiçada por esses caciques da política angolana para se despedirem da vida política activa e saírem pela porta grande a fim de cuidarem dos seus assuntos privados, mormente da sua saúde, da família e dos negócios.
No passado tivemos os casos do nacionalista Lúcio Lara que abdicou de tudo e muito recentemente do nacionalista Lopo Fortunato do Nascimento que deixou o parlamento com um discurso emblemático que foi aplaudido de pé pelos Deputados de todas as bancadas. Nesta Legislatura 2017-2020, o nosso Parlamento conta com um escol de ´´patriarcas´´ que são uma espécie de senadores vitalícios, embora não tenhamos ainda um parlamento bi-cameral. Alguns deles são resquícios da antiga Assembleia do Povo (1980-92) e denotam já muitas limitações em termos de desempenho. A natureza não dá saltos, tem as suas leis! Ora o Parlamento não pode ser nem uma pousada de sossego, nem um vale de caídos. Os desafios hodiernos exigem novos paradigmas nas listas de candidatos a Deputados. Mas estes são outros quejandos para tratar ´´se mais mundo houver´´!…
Quanto ao caso do colega Deputado Tchyova, aqui também o Parlamento não tropeçou nenhuma disposição legal. Mas há muito pano para manga! É normal que em caso de exercício de uma função incompatível o Deputado suspenda o seu mandato conforme estipulado no art.º 149º, n.1, g) da CRA. O sujeito em causa fora nomeado Governador do Cunene, foi exonerado do cargo e agora retoma o seu assento. Até aqui tudo bem. O elemento inusitado é que a exoneração foi em consequência de fortes indícios de corrupção ao ponto de o mesmo ser constituído pela PGR arguido em processo-crime.
É nestas condições de ARGUIDO que retoma a sua função parlamentar. Juridicamente encaixa-se por força do princípio da presunção de inocência aplicável a todo o cidadão, sem excepção (art.º 67º, n.2 da CRA). Tecnicamente, tratando-se de um Deputado, evoca-se nestes casos também o instituto da imunidade parlamentar, um princípio que tem estado a criar cócegas na opinião pública porque não coabita com a impunidade. Assim sendo, só pode perder essa qualidade em caso de ´´trânsito em julgado da sentença de condenação´´, segundo o articulado constitucional supracitado.
Todavia, existem outras considerações sobretudo de carácter ético que gostava aqui de partilhar. Se o sujeito foi exonerado do seu cargo de Governador, estou em crer que não foi uma precipitação por parte do Titular do Poder Executivo. Quero crer que foi uma decisão com fundamento em fortes indícios de corrupção. Para o PR João Lourenço ele não é de todo inocente. De algum modo, uma exoneração nessas condições e circunstâncias é inexoravelmente um acto sancionatório que implica ipso facto a retirada de confiança política. Aqui o PR não presumiu a inocência do então Governador. Foram apurados os factos e o PR agiu no âmbito das suas competências políticas. Ora, a questão que se coloca é esta: quem já perdeu confiança política do seu chefe ainda está em condições de representar a Nação como Deputado?
Presume-se que ele defraudou a nação ao desviar fundos destinados para as populações que enfrentavam uma calamidade natural posicionando-se em contramão em relação às políticas traçadas pelo timoneiro do Executivo. Está sob suspeita e nesta condição com que moral pode ele defender as políticas do Executivo na Assembleia Nacional?
Se não serve para Governador, serve para Deputado? Que imagem o nosso parlamento pode estar a dar aos cidadãos com uma mão-cheia de DEPUTADOS ARGUIDOS em processos-crime? Na minha modesta opinião, atendendo ao facto de que os Deputados regem a sua conduta pela ética e decoro parlamentar, entendo que um Deputado deve ser impoluto, irrepreensível e íntegro antes, durante e depois do exercício das funções. Se, por um lado, o Direito protege o nosso colega, por outro, a Ética o expõe sem contemplações mesmo com a sua presunção de inocência. No seu lugar eu preferiria continuar com o mandato suspenso até que tudo seja esclarecido e se restabeleça a minha integridade moral caso fosse ilibado pelo tribunal. Todavia, tot caput, tot sententiae (cada cabeça, cada sentença). Só o seu Grupo Parlamentar podia persuadi-lo a não retomar imediatamente o assento. Mas preferiu acolher o seu camarada em gesto de plena solidariedade.
Entretanto, este facto traz à liça o emblemático processo do Dr. Augusto Tomás, o único Deputado detido, julgado e condenado ao arrepio da Constituição e da Lei, segundo opiniões autorizadas na matéria. As circunstâncias desse processo eram tecnicamente as mesmas do Deputado Vigílio Tchyova. O Dr. Tomás é Deputado eleito nesta IV Legislatura, tomou posse – o que lhe confere todos os direitos e deveres – suspendeu o mandato por força duma função incompatível no Executivo, mas ao ser exonerado bloquearam literalmente o seu regresso ao Parlamento, embora tenha recebido o convite da sua bancada para as jornadas parlamentares em Cabinda (Set 2018).
Não houve nenhuma diligência junto da Assembleia Nacional para o levantamento das imunidades, foi detido de forma arbitrária e nem lhe foi concedido pelo menos um habeas corpus doutamente requerido pelos causídicos em virtude da prisão ilegal. Não entrarei no mérito da matéria probatória nem me compete aferir juízos sobre a culpa ou inocência do Dr. Augusto Tomás. Mas o que me parece é que no seu caso já não funcionou a presunção da inocência ao ponto de ter aguardado o julgamento em prisão preventiva durante quase um ano, o que traduz alguma obsessão dos magistrados por medidas extremas de coação. Aliás mesmo depois de ter sido constituído arguido até ao trânsito em julgado presume-se que devia estar a exercer as suas funções como Deputado. Mas não foi assim. Não é preciso arrojar mais argumentos, pois estão aqui dois pesos e duas medidas.
Tudo indica que o Dr. Augusto Tomás foi vítima de um processo trivial com outros contornos. Se o sistema quis assim provar, com o caso Augusto Tomás, que o moteto do PR João Lourenço – ´´Ninguém é tão poderoso que não possa ser preso (…)´´ – é mesmo para ser levado a sério, então devia ser consequente para os demais casos que estão aí à mão de semear. Mas tudo indica absolutamente o contrário. Tenho sobre isso a sensação de que esses processos-crime estão a ser arrastados ex professo para que o Parlamento não passe pelo ´´embaraço´´ de formalizar a entrega dos DEPUTADOS ARGUIDOS à Justiça através do levantamento das imunidades.
Provavelmente até ao final da presente legislatura não teremos diligências de género. Depois do ano 2022, talvez já despojados das imunidades parlamentares, a Justiça poderá finalmente tê-los à mercê. Até lá, vamos continuar a assistir essa orquestra completamente desafinada do combate contra a corrupção e a impunidade, cujo maestro anda à nora com os seus próprios propósitos. Espero com estas reflexões ter podido persuadir os meus interlocutores, penitenciando-me do meu primeiro insucesso, pois foi um diálogo assim meio desajeitado. Talvez porque quando escrevo estou mais seguro do que digo porque a pena é indelével (Scripta manent) e o que escrevemos faz lei (Lex est quod notamus).
Texto de Raul Tati Deputado
MBEMBU BUALA PRESS (A VOZ DE CABINDA)